sexta-feira, 21 de junho de 2013

Cultura Brasileira I - Aula #

Na primeira metade da aula de hoje, a professora Luciene Dias coordenou um debate sobre o texto "As Invenções do Cotidiano", de Everardo Rocha. O texto é parte do livro "Jogo de Espelhos: ensaios de cultura brasileira".

Everardo Rocha propõe-se a tecer uma análise a partir do detalhe, isto é, do particular para o geral, indo na contra-mão da maioria das análises científicas, as quais procuram regras gerais para explicar especificidades, ou seja, do geral para o particular.

O autor critica a visão de Gilberto Freyre sobre antagonismos muito próprios da cultura e da própria formação histórica brasileira: europeu e africano; europeu e indígena; africano e indígena; economia agrária e economia pastoril; agricultura e mineração; católico e herege; jesuíta e fazendeiro; bandeirante e senhor de engenho; paulista e emboaba; pernambucano e mascate; proprietário e pária; bacharel e analfabeto. Segundo Freyre, o antagonismo predominante seria o do senhor vs. o escravo.

Segundo Rocha, por um lado, Freyre lista dilemas e dualidades próprias da elaboração da cultura brasileira. Entretanto, por outro lado, Freyre busca um equilíbrio entre as partes antagônicas, acreditando que a compatibilização do antagonismo pelo equilíbrio levaria a um enriquecimento da cultura, em uma espécie de mistura positiva e saudável.

Para Rocha, a realidade da cultura brasileira é mais complexa do que a apresentada por Gilberto Freyre. Lembrando a visão de Rita Segato, o autor afirma que não buscamos essa síntese proposta por Freyre, nem traçamos uma demarcação nítida dos pólos antagônicos: "operamos com os dois lados opostos de forma simultânea". Ou ainda, às vezes, criamos "um terceiro termo que não é síntese, mas negação, renúncia ou perplexidade diante dos outros dois". Trata-se de uma convivência (pacífica?) entre os contrários.

Everardo utiliza-se do termo ambiguidade ou eixo da ambiguidade para se referir à presença de éticas dúplices na cultura brasileira. Tal duplicidade pode ser observada, por exemplo, na ambiguidade apontada pelo autor entre a ética burocrática e a ética pessoal. O código burocrático é impessoal e universalizante, igualitário. Entretanto, no âmbito pessoal, a ética burocrática e a lei podem dar lugar ao jeitinho, à malandragem, à exceção à regra. "Aos inimigos, a lei; aos amigos, tudo!"

O autor parte, assim, para a análise da cultura brasileira sob a ótica (ou "lente", para lembrar o estudo que fizemos do texto "Cultura - Um conceito antropológico", de Roque de Barros Laraia) dessa ambiguidade por ele proposta. Ele analisa dois "detalhes" ou fatos isolados:
  1. uma descoberta típica da infância brasileira, "Quem descobriu o Brasil?";
  2. o tetracampeonato de futebol conquistado em 1994 nos Estados Unidos.


No primeiro caso, Everardo Rocha assinala que, quando a criança brasileira aprende na escola que Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil, na realidade, ela apreende três descobertas:
  • a descoberta do Brasil, efetivamente realizada por Pedro Álvares Cabral (um saber operacional e útil para boa parte da vida escolar básica);
  • a descoberta de que esse saber é amplamente compartilhado (todos os brasileiros compartilham tal "ensino");
  • a descoberta de que o Brasil descobre-se (ao contrário dos Estados Unidos ou outros países americanos, onde as crianças são ensinadas sobre a fundação, construção ou conquista de seus países).

"Aprender a descoberta do Brasil é, em certo sentido, aprender que estamos presos na compulsão das descobertas." É o mito das descobertas e invenções, do descobridor e do inventor, do "salvador da pátria". Basta olhar para a enormidade de planos econômicos que tentaram re-inventar ou "salvar" a República brasileira pós-ditadura militar, sufocada pela inflação. Basta olhar para as várias constituições brasileiras, numa tentativa de descoberta, invenção ou salvação política do país. Historicamente, há muitos exemplos: 
  • Tiradentes, o mártir da Inconfidência Mineira;
  • D. Pedro I, herói da Independência;
  • Princesa Isabel, heroína da abolição da escravatura;
  • Marechal Deodoro da Fonseca, herói da República;
  • Getúlio Vargas, o pai dos pobres;
  • Pelé, o rei do futebol;
  • etc.

Citando DaMatta, "na lógica das 'descobertas' [...] as instituições sociais e os valores políticos ficam a salvo da discussão em termos das suas responsabilidades nos processos históricos e sociais. [...] Nas fundações, [...] enfatizam-se instaurações, rupturas, descontinuidades e conflitos."


No segundo caso em análise (tetracampeonato brasileiro), Rocha expõe a insatisfação geral dos brasileiros com relação ao estilo de jogo que a seleção brasileira campeã do mundo apresentou em 1994. Privilegiava-se a técnica e o planejamento, em detrimento do talento, da malandragem e da magia do futebol arte tipicamente brasileiros. Ganhamos com um futebol feio, retranqueiro, excessivamente "europeu".

O autor inicia a análise comentando sobre a facilidade com que transitamos entre o futebol e a realidade social, isto é, a facilidade com que traçamos paralelos entre o futebol (particularmente o selecionado nacional, a seleção "canarinho") e a sociedade brasileira. Dizemos "o Brasil está no ataque", enquanto, na verdade, 11 futebolistas selecionados disputam uma partida de futebol em busca de uma vitória ou premiação, e não uma "batalha" pela "conquista" de algo socialmente relevante.

Essa facilidade que temos de metaforizar a realidade social por meio do futebol encontra um problema quando encara a seleção tetracampeã de Parreira. Tivemos um destaque individual (Romário), mas, segundo Rocha, nenhum comparável ao Pelé de 1970 ou ao Garrincha de 1962, contrariando a lógica cultural brasileira de eleger um mártir ou um herói, um descobridor, dotado de talento inigualável ou mesmo de poderes especiais. Essa lógica talvez volte a fazer sentido no sucesso de 2002, quando o talento de Ronaldo, mesmo face às múltiplas dificuldades pós-cirúrgicas e à sombra do fiasco de 1998 contra a França, superou o melhor goleiro do torneio e "trouxe a vitória para o Brasil".

Dessa forma, "do gênio improvisador de 58, 62 e 70 aos organizados burgueses de 94, existe uma imagem importante nesta seleção, nos levando da desordem para a ordem, do improviso para a organização, do jeitinho à burocracia, da malandragem às leis universais, da casa para a rua. [...] Do mágico acaso dos descobrimentos aos processos negociados das fundações, [...] dos descobridores talentosos aos fundadores humanizados. [...] De alguma forma, gostamos de imaginar que fazemos as coisas magicamente."


Rocha extrapola a ideia para o âmbito da Fórmula 1, lembrando os tempos de Ayrton Senna, quando valorizava-se o talento do campeão brasileiro em detrimento da racionalidade técnica de todos os profissionais envolvidos na construção e ajuste do carro, da máquina. Na realidade, Senna, sem dúvida, possuía enorme talento, principalmente debaixo de chuva, quando "fazia milagres". Entretanto, foi a combinação de seu talento com a racionalidade técnica da McLaren do início dos anos 90 que lhe valeram seus três títulos mundiais. 

Everardo lembra ainda de Emerson Fittipaldi, bicampeão de Fórmula 1. Talento comprovado nas pistas, fracasso técnico enquanto organizador da Copersucar, equipe de Fórmula 1 brasileira. A equipe foi motivo de chacota, ridicularizada pelos brasileiros. "Reagimos mal à proposta de também ser tecnologia."

Com a imagem da conquista do tetracampeonato brasileiro, Rocha afirma que "o Brasil pode se organizar... e vencer [...] talvez não precisemos de heróis, políticos populistas, salvadores da pátria, figurões, líderes carismáticos, medalhões, ditadores ou caudilhos nos ensinando os caminhos do paraíso. Talvez, por força daquele jogo amarrado e feio, se possa encenar um drama diferente e afinal não seja preciso nenhum Dom Sebastião resgatando a alma e cobrando a conta."

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Na segunda metade da aula, a professora Luciene Dias trabalhou a leitura e interpretação do texto "Ritos corporais entre os Nacirema". O texto fala sobre os dilemas do trabalho do antropólogo ou de qualquer um que se proponha a analisar uma sociedade, suas origens, seus ritos. Há uma grande sacada no texto - a qual não revelarei aqui! Seria como contar o final de um filme que você ainda não viu e quer muito ver... Recomendo a leitura!

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