quinta-feira, 25 de julho de 2013

"Quem sabe faz a hora, não espera acontecer"

Arte: Decy/Morbeck Foto: Ailton Sousa

Quinta-feira, dia 20 de Junho de 2013. Apanhei minha mochila surrada que me acompanha desde o Ensino Médio, água, vinagre, câmera, tinta, spray, o cartaz que havíamos feito na semana anterior, a bandeira do meu país. Pintei a cara e fui pra rua. O ônibus demorou cinquenta minutos pra chegar. “Malditos ônibus”. Subi as escadas, cumprimentei o motorista. “Pobre coitado”. Lá se foi meu último sitpass. “Essa realidade vai mudar”. Espremido entre um feirante e sua carga, “lá vou eu pra Praça Cívica”.

Olhava os rostos dos passageiros. Alguns dormiam, o sol castigava a tarde do goianiense. Pensei em ler o texto da aula seguinte de Cultura Brasileira, “Jogo de Espelhos”. Sem chance: impossível ler em pé, um olho na mochila (com minha câmera) e outro no texto, um pé de alface no sovaco esquerdo, uma criança chorando “Mãe, quero fazer xixi”, os solavancos do busão que ameaçavam lançar ao chão uma senhorinha que não tivera a sorte de achar um lugar pra se sentar. “Essa realidade tem que mudar”.

Avenida Goiás. “Estamos chegando”. Artéria pulsante, fluxo constante. O motorista recebe com uma buzinada o aceno de um colega que desce no sentido oposto. Sinal de luz, dois farois curtos. “O protesto está começando”. Passamos pela Praça do Trabalhador, meu coração acelera. Lembro das histórias que meus avós contavam, sobre a maria-fumaça, sobre a estação de trem, o teatro de arena. Hoje tudo é deserto, a locomotiva jaz a céu aberto, o crack toma conta das noites, a violência bate à porta da Câmara dos Vereadores. “Corruptos!” - “Essa realidade precisa mudar”.

Primeiro ponto da Goiás, finalmente consigo me sentar! O ônibus desacelera, uma multidão entra e sai. Testemunho o furto de um boné, ali em frente à Catedral da Fé. “Jogo de Espelhos” - rio comigo mesmo e lembro da Facul, dos colegas de Jornal. Abro discretamente a mochila, confiro a câmera, as tintas, a bandeira. “Tá tudo aqui”. Um gole d’água pra matar a sede. “Sede de justiça!” À frente já dá pra ver o movimento, uma aglomeração maior de carros, um buzinaço, uma fumaça cinzenta. “É o protesto!” Salto do ônibus e decido fazer o resto do caminho à pé, com alguns companheiros de luta que estão do lado direito da avenida, ali, pouco depois da Paranaíba. “Vamos mudar essa realidade!”

Arte: Decy/Morbeck Foto: Ailton Sousa

Ouço o burburinho que vem da Praça do Bandeirante, lembro que meus pais não sabem que estou ali. “É perigoso, filho...” Mesmo assim, eu tinha que vir. “O gigante acordou”. “Desculpe os transtornos, estamos mudando o país”. O Bandeirante, lá de cima, olha sisudo o movimento a seus pés. “Onde está minha Praça?”, pensa ele, bateia e bacamarte em mãos. Acabou-se o ouro, acabaram-se os índios. “Para onde vou?”, indaga-se diariamente, contemplando o corredor de ônibus que levou sua Praça. Símbolo de uma cultura forjada, de fato parece não haver mais espaço para desbravadores por aqui. “Diabo Velho, desça daí! Venha mudar essa realidade!”

Pneus em chamas, trânsito interrompido, as mídias, em peso, cobrem a manifestação. Encontro alguns colegas de Jornal, avançamos juntos, passo firme, rumo à Praça Cívica. A polícia acompanha o movimento, alguns a cavalo, outros no choque. Lembro dos protestos das semanas anteriores, dos colegas que se machucaram, dos que foram levados pela polícia, das armas que foram apontadas em nossa direção. “Sem violência!” Tiro a bandeira verde-amarela da mochila, empresto o spray a um camarada que passou à minha esquerda. “Sem partido!” As vozes das ruas começam a ganhar força, conforme nos aproximamos do Palácio das Esmeraldas. “Vem pra rua, pra rua vem!”

Faço da bandeira uma capa. “Sou um herói, um herói nacional!” Meu cartaz agora soma-se a milhares de outros, o protesto é o mais bonito dos últimos dias. “Eu sou brasileiro, com muito orgulho, com muito amor...” Praça Cívica. “Que demonstração de civismo!” Olho pro Monumento às Três Raças. “Índio, negro, branco: quem sou eu?” Olho ao redor, a noite cai, quero viver cada minuto intensamente. Faço saltar a câmera, subo num muro próximo, tiro uma foto da galera. “Sou jornalista”, penso com orgulho. “Estou mudando a História”. Choro, emocionado, por dentro - não quero que me vejam chorar.

O Centro Administrativo, sempre tão imponente, parece pequeno diante da multidão. A vidraça me faz lembrar novamente do texto de Cultura. “Não importa, estou fazendo história!” Continuamos a marcha, já nou sou eu quem marcha, é o povo quem marcha. A liberdade guia o povo. O povo guia o futuro da nação. “Que país é esse?” Uma legião toma conta da maior urbe goiana. Por alguns momentos, o futebol e a novela ficam em segundo plano. Por alguns momentos. Uma noite, talvez menos. “Mas já é alguma coisa...” 

Arte: Decy/Morbeck Foto: Ailton Sousa

Um princípio de confusão, correria, fumaça, gás pimenta, empurra-empurra. “Corre, corre!” Perco de vista os colegas, fica difícil respirar, levo algumas bordoadas da polícia que até então nos entregava flores. “Ei, polícia, cadê seu reajuste?” Tomo o rumo da Praça Universitária, a maioria dos estudantes parece seguir por ali. “Caminhando e cantando e seguindo a canção, Somos todos iguais, braços dados ou não”. Acho que é hora de voltar pra casa, tenho um caminho longo até lá, meus pais me esperam, mal sabem onde e como passei as últimas horas.

Chego em casa. Minha mãe me aguardava ansiosa. “Meu filho, você foi se meter naquele protesto, né?” Bom, acho que não deu pra esconder... Tomo um banho frio, desacelero o coração para a noite de sono que se aproxima. Sento à mesa pra comer alguma coisa, ligo a TV pra ver como estão os protestos em todo o país. No Rio de Janeiro, a Avenida Rio Branco foi tomada pelos manifestantes. Em São Paulo, a Paulista. Em Brasília, ocuparam o teto do Congresso Nacional! “Yes!” - deixo escapar um estranho grito de satisfação e esperança. “Fizemos História!”

“Enquanto uma maioria pacífica conduziu as manifestações, uma minoria de baderneiros depredou a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro” - ouvi o Willian Waack, relatando a manifestação carioca. “Em São Paulo, uma maioria [...], uma minoria [...].” “Já em Brasília, a maioria [...], enquanto uma minoria [...]” Maioria e minoria. Claros e escuros. Pacíficos e baderneiros, arruaceiros, vândalos. “Quem sou eu?” Casa, rua; rua, casa: “Quem sou eu?” Estudante, trabalhador, bandeirante, cidadão, polícia: “Quem sou eu? Que realidade eu quero mudar? Que História eu quero fazer? Que Avenida eu quero seguir? Em que Praça eu quero chegar?”

Sigo para o quarto, cama feita, apago a luz. Contrariado, deito a cabeça sobre o travesseiro e, pelo fone de ouvido, ouço as palavras de Vandré, ainda envolto em meus questionamentos: “Vem, vamos embora, que esperar não é saber. Quem sabe faz a hora, não espera acontecer.”

Arte: Decy/Morbeck Foto: Ailton Sousa

Texto: Ailton Sousa

Nenhum comentário:

Postar um comentário